terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Até onde devemos relativizar?

É natural que os grupos étnicos existentes coloquem seus valores culturais e morais como sendo os mais elevados e portadores dos mais altos padrões de comportamento. A necessidade de se afirmar e de fortalecer uma identidade cultural faz atuar certo preconceito trans-cultural. O xenofobismo atravessou os séculos, e desde a antiguidade até os dias de hoje vem se apresentando das formas mais variadas. Esse receio quanto ao “outro”, quanto ao “diferente” é inerente e se apresenta em todas as sociedades nas mais diversas áreas que esta possa ter. Consideramos nossa religião a correta, nosso sistema de parentesco o mais evoluído, nossos afazeres como os de maior importância. Enfim a “gente” acredita que o outro é esquisito e que somos normais.

No período das grandes navegações (séc XV) a Europa começou a ter contato com outras sociedades, com um mundo exótico e diferente aos seus olhos. Assim como todas as etnias, os europeus se colocavam (como o centro ou no centro) de todas as coisas e consideravam os Negros seres desalmados e os Índios desprovidos de cultura, de acordo com o que nos diz Pero Vaz de Caminha em sua carta: “parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendessem e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles (os Índios), segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença” (Carta, 1987: 90).

Essa visão prevaleceu até final do século XIX e início do século XX quando surgiu um interesse de olhar para o “outro”, para o “selvagem”, de tal forma a entendê-lo. A antropologia, em sua gênese, quebrou com certos paradigmas europeus e nos ensinou que, ao contrário do que se pensava, a vida social desses povos “primitivos” não é um caos completo. As crenças não são um conjunto de rituais sem sentidos, os sistemas de parentesco não são regras absurdas que nem eles próprios entendem e os sistemas políticos não são totalmente desorganizados. Percebemos então, que a cultura do outro é possuidora de uma lógica. Diferente, mas lógica. Aprendemos a nos estranhar e a perceber na cultura de outras sociedades diversos elementos que se assemelham com a nossa. Com isso criou-se um maior respeito para com as outras sociedades. O mundo ocidental percebeu (pelo menos na teoria) que não devemos impor a nossa cultura e nossos valores a outras sociedades, simplesmente devemos aceitar suas diferenças. Talvez seja essa a lição mais importante apresentada pela antropologia.

Entretanto esse tema ainda prevalece com força nos dias atuais. No mundo globalizado as fronteiras entre as sociedades diminuíram bastante. Vemos índios andando de carro, chineses comendo McDonalds, africanos protestantes, entre diversas outras assimilações culturais que em outros tempos pareceriam absurdas. Verificamos que as lições antropológicas muitas vezes não foram assimiladas pelo mundo ocidental. Vemos isso na tentativa dos EUA de forçarem a democracia aos iraquianos, sem se perguntar se era esse o modelo mais apropriado para o tipo de sociedade que ali existia. Então, devido a essa aproximação entre as culturas, não sabemos ao certo como lidar com diferenças que muitas vezes entram em choque com os padrões morais que nós acreditamos serem inquestionáveis. Fica então uma pergunta: existem mesmo esses valores que são inquestionáveis? Para os propulsores do relativismo cultural, Franz Boas, a resposta é não. Para esse antropólogo cada sociedade julga a si mesma, e não existe o bem e o mal, mas sim o que uma sociedade acha que é bom ou mau. Não existe o certo ou errado, mas o aceito culturalmente e o rejeitado. Mas, então, como que esse relativismo enxergaria o infanticídio presente nas comunidades indígenas brasileiras quando a criança nasce portadora de alguma doença? Ou quando as mulheres são mutiladas em sociedades islâmicas africanas e asiáticas? Para esse antropólogo essas coisas não são certas ou erradas, tudo depende da sociedade na qual tal prática se coloca em evidência. Não existe, portanto, o que chamamos de direitos humanos. Devemos respeitar e enxergar como apenas uma diferença de paradigma o fato de numa sociedade as pessoas oferecerem as outras como sacrifícios de morte, ou o apedrejamento de mulheres, mutilações, infanticídio do segundo bebê quando se tem gêmeos.

Porém existe aqueles que não enxergam esses elementos culturais dessa forma. A corrente dos defensores dos direitos humanos vai contra essa visão e diz que não importa em qual sociedade um indivíduo esteja, ele possui direitos que devem ser observados. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU, afirma que: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidades e direitos”. Defendem, portanto, que o Estado deve interferir nos meios onde tais direitos do Estado garantir esse direito aos membros de suas sociedades. Vemos, segundo os defensonão são observados. É papel res dessas idéias, que a relativização cultural tem limites. Esses limites são os direitos humanos. Sempre que numa cultura existam práticas que estão em desacordos com os direitos naturais dos seres humanos, uma atitude deve ser tomada mesmo que vá contra certos valores assimilados por esse grupo. O ministro das relações exteriores da Indonésia, em 14 de junho de 1993, afirmou, na Declaração de Bangkok, que “não viemos a Viena (...) para defender um conceito alternativo de direitos humanos, baseado em alguma noção nebulosa de relativismo cultural como falsamente acreditam alguns”. O vice-ministro das relações exteriores do Irã, em 18 de junho de 1993, declarou que “os direitos humanos, sem sombra de dúvida, são universais (...) e não podem estar sujeitos ao relativismo cultural”. O vice-ministro das relações exteriores da República Socialista do Vietnã, em 14 de junho de 1993, observou que “os direitos humanos são, ao mesmo tempo, um padrão absoluto de natureza universal e uma síntese resultante de um longo processo histórico (...) universalidade e especificidade são dois aspectos orgânicos dos direitos humanos inter-relacionados, que não se excluem, mas coexistem e interagem”. (trechos retirados do texto “Não há morte sem dor” do antropólogo brasileiro Ronaldo Lidório)
Claro que os defensores dos direitos humanos acreditam que a intervenção não deve ser feita sem a observação e o respeito aos costumes dos outros, mas crêem, antes, que através do diálogo pode-se pensar e alcançar maneiras alternativas de solucionar o problema e garantir os direitos aos homens sem passar por cima da cultura dos povos. Contudo, tal intervenção mostra-se, para eles, inegavelmente necessária.

Vemos, portanto, duas maneiras diferentes de enxergar o relativismo cultural. Os radicais, que dizem que tudo deve estar sujeito ao relativismo cultural e os que dizem que para além do relativismo devem ser observados valores que são sim universais. Gostaria agora que aqueles que leram, escrevam sem medo. Aqui vocês podem dizer o que realmente pensam sem medo de estarem em desacordo com as teorias antropológicas ou com as declarações feitas nas convenções sobre direitos humanos. Qualquer comentário aqui é bem-vindo, basta que haja interesse pelo tema.
Obrigado!

9 comentários:

  1. Bom, acredito que o que se encontra no cerne da questão dos direitos e costumes, é o respeito. Como garantir o respeito ao ser humano, sem desrespeitar uma cultura?

    E a meu ver, o que pode tornar um determinado hábito cultural desrespeitoso, é a mesma coisa que pode tornar uma intervensão externa desrespeitosa, que é o reconhecimento da autonomia do indivíduo. Vou pegar um exemplo semi-hipotético (sem citações bibliográficas =) ). Suponha religiões em que é exigido às mulheres esconder completamente o cabelo em ambientes públicos, sendo considerado promiscuidade a não observação da regra. Há uma diferença enorme em um local em que a religião é livre, e o indivíduo pode optar por aderir a esses hábitos, e um local em que o indivíduo é coagido, sob pena de punições físicas, a se submeter aos mesmos. O que torna-se cruel, é o não reconhecimento da diferença entre os humanos, e não reconhecimento do direito de escolha.

    Acho que esse exemplo é análogo a situação é que uma "ajuda" é imposta. Supomos no mesmo contexto, que o indivíduo fosse proibido de aderir a crença (que nesse caso, afeta estritamente ao sujeito, quero atentar). É uma situação comum no cotidiano, como vemos ao estudarmos os problemas sociais envolvendo pessoas com alguma forma de deficiência. Não é incomum que alguém execute alguma ação, a seu ver de auxílio, sem ser requisitado ou sem consultar antes o indivíduo que está sendo auxiliado. Li num texto escrito por um psicólogo da área, uma intrevista com alguns de seus pacientes, um dos quais cego, e que conta como, diversas vezes, ao aguardar um amigo no ponto, já foi arrastado quase ao meio da rua por um passante que acreditava que ele esperava por auxílio para atravessar.

    Acho necessário, em diversas ocasiões, a intervenção externa para garantir num determinado grupo, a autonomia dos membros que são prejudicados, contra própria vontade, pelas práticas do grupo, contanto que a intervenção seja feita de forma respeitosa, ou seja, considerando a autonomia do grupo, e buscando uma ação precisa, apenas sobre o fator de interesse, não alterando outros aspectos da integridade do conjunto que se apresentam apenas como diferenças neutras (diferentes, mas aceitos e importantes para o grupo como unidade).

    Bom, não revi o texto, então perdoem por qualquer idéia solta sem nexo ou sem conclusão, e por qualquer (provável) erro de digitação.

    Abraços.

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  2. Bem, em primeiro lugar, parabéns pelo texto, ficou excelente. Em segundo lugar, parabéns pelo assunto, considero de fato essa questão importantíssima para a sociedade atual. Em terceiro, a minha opinião:

    De fato é curioso como tendemos a levar os preceitos que regem nossa sociedade ocidental como universais. No texto da ONU mesmo, puxando a terceira meta do milênio, propõe-se obter iguladade entre os sexos e autonomia da mulher. Porém, são muitas as sociedades, principalmente no oriente, que não concordariam com esse preceito. E, se não houve um movimento das próprias mulheres desses países exigindo igualdade, por que a ONU deve ditar que assim deve ser? Não bastasse esse argumento, lembro-me de ter lido várias charges, contos e textos que tratam desse assunto específico da autonomia da mulher abordando a questão com uma visão interessante. Trata-se de uma visão voltada para o fato da mulher ter largado sua posição de subordinação e ter passado para uma posição desconhecida por ela mesma na sociedade. Nessa nova posição, além das antigas tarefas domésticas, ainda assume tarefas antes delegadas aos homens. Assim, dobraram suas responsabilidades na sociedade. Apesar disso, ainda é significativa a diferenciação de salários entre os sexos. Portanto, questiona-se se essa mudança foi completamente positiva. Agora me pergunto: como podemos querer universalizar um preceito que ainda está defeituoso em seu nascedouro?

    Bem, partindo desse exemplo em muito simplificado para uma visão mais ampla do tema, creio que a sociedade ocidental adotou uma postura de forçar sua cultura às demais sociedades através da ONU e de seus direitos universais. Apesar disso, como no caso descrito das mulheres, não se sabe ao certo se esse é necessariamente o melhor caminho a ser seguido pelo mundo.

    Outro exemplo semelhante aparece na oitava meta: "estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento". Qual desenvolvimento? Como podemos afirmar que todos no mundo aprovam o desenvolvimento no modelo ocidental? Quem disse que todo o mundo se importa com luxo e tecnologia? Pergunte a um monge na indonésia se ele se importa com bens materiais e se quer que sua sociedade seja americanizada...

    Bem, de maneira geral, creio que a relativização deve ser ampla, embora não total. Esse porém fica por conta da possibilidade de uma relativização total esbarrar em excessões como governos ditatoriais ou outras cicunstâncias que possam se apossar da relativização para escapar ao bom senso. (expressão esta curiosa de ser usada em um texto que discute justamente sobre a universalização de conceitos que ditam o bom senso)

    De toda forma, o que vejo na busca por uma universalização de nossos direitos humanos hoje é uma situação comparável à missão civilizadora do antigo imperialismo inglês...

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  3. Eu acredito que existam sim direitos humanos que sejam universais. Princípios que em qualquer sociedade devam ser observados. Um deles, talvez o mais importante, é o que o André disse: Respeito e liberdade de crença. Mas, além disso, acredito que existam mais princípios que deveriam ser observados, como por exemplo, a liberdade.

    No meu entendimento, se existe uma sociedade onde a liberdade do individuo não está sendo observada, a intervenção deve sim ser feita. Existe um autor chamado Jonh Stuart Mill que escreveu um livro chamado "Liberalismo", onde ele faz a seguinte pergunta: Um determinado indivíduo tem o direito de consolidar um contrato abrindo mão de sua própria liberdade para se entregar a escravidão? A resposta que o autor dá a essa pergunta é negativa. Diz que isso não pode ser feito, que o Estado precisa "obrigar" os seus cidadãos a serem livres. Concordo com isso.

    Partindo dessa visão eu assento que princípios como a igualdade de direitos entre os sexos também devem ser observado. Obviamente na nossa cultura esse principio está longe de ser aplicado de uma maneira adequada, incidimos mesmo nesse problema de mulheres adquirirem uma função dobrada e ficando mais sobrecarregada do que antes. Mas essa igualdade de direitos entre mulheres e homens não necessariamente, e não acredito que precise ser, é uma igualdade de funções e nem igualdade de sexo. Homens e mulheres são diferentes, e tem que ser. Mas, se em uma sociedade as mulheres são privadas de direitos e são oprimidas acredito que uma intervenção precisa sim ser feita. Acho que é uma visão bastante radical, mas reforço que intervenção não é sinônimo de tropas militares chegando a um lugar e massacrando aqueles que não respeitam as mulheres. Um trabalho social intenso precisaria ser feito, pegando elementos daquela própria sociedade que ressaltam a importância e o papel da mulher de tal forma a mostrar para as pessoas que elas devem ser respeitadas.

    Gostaria de finalizar apenas dizendo que aquilo que foi dito pelo Lucas sobre o fato de nossos princípios "superiores" estarem cheios de defeitos, é muito verdadeiro. Basta lembrar de que o principio mais elevado do mundo moderno, pós revolução francesa, a democracia, em seu nascedouro excluía metade da sociedade. Falavam sobre o direito de voto, o direito de escolha, mas excluíam as mulheres desse sistema. Que democracia é essa onde a metade dos civis é excluída do processo? Enfim creio que devemos olhar para nós mesmos com um olhar mais crítico e observar que nossos próprios princípios estão cheios de erros e contradições.

    Obrigado pela contribuição ai pessoal. Vou ver se consigo criar mais temas para debates ao longo dessa semana (não que este esteja perto de se esgotar, muito ainda pode e deve ser conversado). Estou meio sem tempo, mas vou ver se consigo pensar em algo, E ressalto que idéias de debates são mais do que bem vindas.

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  4. Bom, já dizia Jack, por partes...

    Primeiramente, o ponto que mais me chamou atenção no seu comentário, Madsen: Aquilo sobre imposição de desenvolvimento. Eu sei que é criticado considerar uma cultura mais desenvolvida do que a outra. Mas quando a ONU fala de desenvolvimento ela não tá falando de desenvolvimento tecnológico (índios dirigindo BMW´s). Ela tá falando de índices de desenvolvimento, ou melhor, IDH. Aí entra é saúde, distribuição de renda, condições de vida. E eu acho importante que toda nação, independente de cultura, busque uma condição favorável e justa de vida. Acho difícil contestar a busca por qualidade de vida (não to falando, mais uma vez, de laptops pra todos, todo falando de combate a fome, doenças, etc...).

    E aqui queria colocar meu apoio à forma de trabalho da ONU.ACho que a ONU pode ser criticada por ineficiência, por falta de influência política, ou o que quer que seja. Mas acho que eles tomam um cuidado enorme no que se trata de respeito à cultura e ao ser humano de forma mais geral...

    Bem, seguindo. Eu entendo que a questão de igualdade não está resolvida na nossa sociedade como tenta fazer-se acreditar. O que não quer dizer que a igual autonomia de ambos os sexos não devam existir.

    Eu tomei muito cuidado de defender autonomia do indivíduo, e não liberdade, porque por vezes acho que a palavra liberdade é utilizada de forma liberal (com perdão do trocadilho). Afinal, se cada um faz o que lhe dá na telha, voltamos à idade da pedra... mas acho que o mínimo, é a autonomia do indivíduo para adotar ou não uma prática cultural de valor relativo (práticas estéticas por exemplo. Ou religiosas).

    E aqui entra o comentário ao início do texto do Madsen. Sobre não haver movimentos femininos internos nesses países que se oponham À atual cultura. ACho isso uma afirmação perniciosa. Têm diversas obras, tanto filmes, quanto livros, quanto reportágens, etc... que retratam do ponto de vista de mulheres desses locais a dificuldade de se ganhar voz. E ainda assim ouvimos dizer desses movimentos, nós que estamos fora do país. Agora, imagina a dificuldade de se protestar, quando os inimigos de seus ideais são, muitas vezes, o parceiro conjugal... Seilá. Acho leviano afirmar que esse tipo de coisa é acordo comum de homens e mulheres dessas nações. Ainda que fosse, acho que só a aderência CONSCIENTE e VOLUNTÀRIA a essas práticas sería de alguma forma consebível, sendo importante averiguar a possibilidade da população afetada discutir de forma livre o tema, cada indivíduo optar, racionalmente, por fazê-lo.

    Aí entro no comentário do Dr. G. De fato, acho que nenhuma decisão do indivíduo pode limitar de alguma forma sua possibilidade de voltar atráz, e de tomar outro rumo. Por exemplo, a aderência a um hábito religioso (suponha usar burca), não pode impedir o indivíduo de, a qualquer momento, mudar de idéia e abandonar o hábito sem que isso acarrete danos. E esse acho que é o ponto ao qual acho que a autonomia tem que se extender. O indivíduo pode optar por limitar ou definir seu comportamente de determinada maneira, contanto que não perca possibilidade de tomar outro rumo se assim lhe convir.

    Bom, é isso. Como foi dito, acho que não tem que ter pressa pra postar novos temas, por que essas coisas não se esgotam, e sempre há pontos a serem discutidos. Principalmente se conseguirmos outras pessoas com outros pontos de vista contribuíndo pra discussão. Bom, é isso. Abraços.

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  6. Certo... Em primeiro lugar quero deixar claro que concordo em certo grau com o que foi contra argumentado nos dois últimos posts. De fato foi um pouco complicado pensar na contra contra-argumentação. Mas lá vai ela, em "ordem cronológica":

    O Estado obrigar o cidadão a ser livre consitui em si paradoxo. Se o cidadão deve ter sua liberdade assegurada pelo Estado, então ele deve ser livre para se livrar dela. Mas, deixando de lado o plano metafísico do debate, simplesmente o Estado não é humano, é institucional. E as instituições devem servir aos humanos e não o contrátio. Dessa forma, se não for interesse dos humanos regidos pelo Estado ter sua liberdade garantida, então o Estado não deve garantí-la. É o caso por exemplo do estado de sítio. Em situações extremas, é aceitável que o Estado tome decisões por si mesmo para garantir a sobrevivência de uma sociedade. Nesse caso, contratantes aceitam que precisam abrir mão dos seus direitos para solucionar uma situação. Resumindo, se por algum motivo, seja ele qual for, uma sociedade decidir que o melhor para seu desenvolvimento é preferível que não haja liberdade, então assim deve ser. Atenção para um detalhe: "se em algum momento a SOCIEDADE" e não o Estado ou seu governante. Dessa forma, não estou apoiando golpistas ou tiranos. Esse princípio deve inclusive ser assegurado pela democracia, curiosamente exportada pelo ocidente. Se é vontade da maioria, então deve ser feito.

    Quanto à questão da mulher eu prefiro dar uma volta maior pra chegar lá e devo associá-la à questão do IDH. Perdoem-me a abordagem histórica que segue.

    As sociedades evoluem cada uma de sua forma específica. É comum que cada uma por sua parte julgue ser superior. Salvo engano, isso é inclusive argumentado no texto original. Bem, dessa forma, ao longo dos anos é possível experimentar vários casos em que uma sociedade julgou ser seu dever civilizar outra e submetê-la a seus valores culturais. Índigenas no Brasil, por exemplo, foram "educados" por jesuítas. Junto com essa educação vinha agragada a religião e os valores cutlurais como vestimenta e hábitos. Hoje, reconhecemos que deve haver liberdade de culto e que os indígenas devem ter liberdade de se vestir como bem lhe aprouver. De maneira semelhante civilizou-se a África. Junto com essa civilização vieram inúmeros problemas que antes não existiam, por exemplo a questão de fronteiras. Bem, hoje entendemos esses erros, mas creio que não entendemos outros. E o cerne da questão é que essencialmente a raiz do problema é o mesmo: nos julgamos detentores de uma sabedoria maior e passamos por cima de valores de outras civilizações, impondo-os.

    Bem, agora levando para um plano tangível: suponhamos então que precisamos elevar o IDH no mundo. Para tal seriam necessários avanços médicos, sanitários e educacionais. Para melhorar os dois primeiros são necessários avanços como sistema sanitário adequado e mudanças nos hábitos de higiene. Bem, se queremos que uma sociedade se desenvolva nesse aspectos, de duas uma: ou ensinamos alternativas de hábito para essa sociedade ou instalamos um sistema de infra-estrutura. Para o primeiro caso, teríamos que ensinar pessoas a evitar defecar próximo a fontes de água e a fazer a higiene pessoal, entre outros. Em ambos os casos seria necessário dar uma alternativa. Geralmente essa alternativa cai na segunda opção citada. Se queremos que uma sociedade indígena, por exemplo, ferva sua água e utilize fossas ao invés de defecar no rio, precisaremos implantar mudanças estruturais. Oferecer vasilhames de metal que possam ser levados ao fogo e ferramentas que permitam a construção desses poços. Bem, e onde os indígenas vão conseguir arrumar esse instrumentos ao longo dos anos? Necessariamente vão ter que comprá-los de alguém, já que eles mesmos não os fabricam. Para comprá-los precisarão de dinheiro. Para conseguir dinheiro precisarão trabalhar de alguma maneira. Isto te parece capitalismo? De repente junto com uma reforma que visava o aumento do IDH se instalou uma reforma que implantou um sistema econômico ocidental nessa sociedade.

    Quando se fala de educação então, um dos critérios para avaliação de IDH, a situação se complica ainda mais. A começar porque precisarão de ler. E muitas das culturas se quer escrevem suas línguas. Supondo que os livros usados fossem traduzidos para suas línguas, o que já é improvável. Ou até melhor, supondo que aulas fossem ministradas sem livros. Ainda assim, necessariamente os professores passariam informações repletas de cultura ocidental. Essas sociedades sofreriam gradualmente uma "aculturação" (embora o termo não seja recomendado) pela intervenção de outra sociedade.

    Aí entra um porém importante na minha argumentação que é importante para compreender o que defenderei em seguida: SE as sociedades em questão QUISEREM ser introduzidas no sistema em questão, não há o menor problema nessa situação. Agora vamos para o outro se...

    É correto passar por cima dos valores culturais de uma sociedade que não busca o desenvolvimento no modelo ocidental para garantir o aumento do IDH? Eu acho que não. Para compreender porquê é só inverter a situação.

    Imagine você que por algum motivo amanhã o mundo oriental se tornasse capaz de ditar as regras do mundo, como nós ditamos hoje. Supomos que julgassem que nossas sociedades possuem uma cultura carente de aspectos médicos adequados e quisessem intervir para nosso bem. De agora em diante sempre que alguém desenvolver um tumor ou tiver um enfarto o procedimento deve ser o seguinte: o afetado é levado até um entendido de acupuntura que irá enfiar umas agulhas na pele do indivíduo em questão. Que acha? Até melhor: será levado a um sacerdote que passará dois dias dançando em volta da cama rogando a um deus em que você não acredita. Bacana?

    Assim como nós muitas vezes somos céticos em relação aos procedimentos que outras sociedades adotam para a cura, muitos deles não confiam na nossa medicina. E aí? É só inverter a situação que é possível ver como a cultura deve ser respeitada.

    Agora podemos conversar sobre as mulheres. Pernicioso falar que não houve iniciativa vinda do Oriente Médio? Talvez... Não nego que muitas pessoas possam sofrer em silêncio por lá. Mas vamos inverter essa situação também. Os arábes alegam que tratam muito bem suas mulheres. Elas devem ficar em casa e não podem trabalhar porque não devem se preocupar com isso. É obrigação do homem dar tudo a ela. Tanto é assim que a poligamia só é possível enquanto o homem é capaz de assegurar o sustento de todas as suas esposas. Certo. Então vamos supor que o Irã se torna a próxima potência mundial. E doravante é um absurdo o tratamento que damos às nossas mulheres. Como podemos nós deixar que trabalhem arrisacando suas vidas no trânsito e sendo submetidas ao estresse do trabalho? De agora em diante devem ser tomadas medidas para que as mulheres gradualmente abandonem o trabalho sejam confinadas em casa... Que acham?

    O importante do grito vir de dentro dessas sociedades é justamente porque não sabemos onde essas elas querem chegar. Essas sociedades são muito mais antigas do que as nossas. Por que aqui as mulheres já adquiriram sua autonomia e lá não? E mais, se é tão ruim assim, por que algumas mulheres se vestem de bomba para expulsar a presença ocidental no Oriente mas não se vestem de bomba para explodir seus maridos opressores? Se a opressão é real, existe oposição.

    Quanto aos filmes, e relatos, naturalmente eles vêm dos instatisfeitos. Não é possível tomar uma decisão contra a maioria, e nós não sabemos quem é a maioria. Se for feito plebiscito por imposição da ONU e concluir-se que as mulheres querem autonomia, ótimo! Mas como podemos julgar que querem isso com base apenas nos que fugiram, obviamente portanto descontentes? E mais, se descontentes conseguem fugir e as mulheres no Oriente estão descontentes, por que ainda existem mulheres lá?

    Se é um erro grande ajudar um cego a atravessar a rua sem que ele tenha pedido ajuda, erro maior ainda é atravessá-lo sem saber se ele quer chegar do outro lado.

    Nós são somos deuses que já sabem o caminho para a melhoria da sociedade. Enquanto acharmos que o mundo precisa de nós antes de saber se o mundo nos quer, caíremos de novo e de novo no erro dos jesuítas e imperialista. Sempre pelo mesmo motivo, mas desfarçado por novas máscaras: religião, civilização, desenvolvimento...

    Não compreender as diferenças e não respeitá-las consiste na razão da maior parte dos conflitos de hoje em dia... Eu reforço minha opinião, a relativizaão cultural merece amplo espaço.

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  7. Bem, confesso que ainda não li todos os comentários aqui postados. Só me atrevi a escrever sobre esse assunto porque, coincidentemente, li hoje na Folha de São Paulo um artigo do filósofo Luiz Felipe POndé que aborda exatamente a questão da crítica ao relativismo antropológico. Entre tantas observações críticas desse artio, Pondé diz: "Relativistas culturais são, no fundo, puritanos disfarçados..." e também "Na realidade, as pessoas lançam mão do argumento relativista somente quando lhes interessa defender a 'tribo' com a qual ganha dinheiro e fama". Se os acompanhantes desse blog se interessarem, eu poderia postar o artigo inteiro. Ele é um pouco longo pra digitar, então vai levar tempo.

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  8. Relativização é sempre um tema complexo. A modernidade trouxe consigo, na expressão de ideais de liberdade e fraternidade um afastamento das noções absolutas e uma tendência a se relativizar tudo. Não há certo e errado, bom ou mau. Tudo depende do ponto de vista.

    Nessa esteira, os direitos humanos assumiram o que os teóricos costumam chamar de caráter histórico. Entende-se que os direitos não existem a priori e que somente com a mobilização dos atores sociais na luta pela sua construção é que foi possível sua concretização.

    Pensando por esse prisma, o direito à vida, à integridade física, à dignidade não existem a menos que o Estado, entidade internacional dotada de soberania territorial, os preveja em normas, muitas vezes inspiradas pelas reivindicações da sociedade organizada.

    Algo desse raciocínio permeia as discussões travadas até aqui nesse tópico. O imobilismo e o "ficar em cima do muro" em situações extremas se apóia em larga medida em proposições como essa.

    A ONU, e mesmo a República Federativa do Brasil se orientam pelo princípio da não-intervenção, como reconhecimento do direito de autodeterminação dos povos. Tanto é que quando os Estados Unidos propuseram a invasão ao Iraque o Conselho de Segurança da ONU VETOU a medida, e o grande defensor dos "frascos e comprimidos" teve que ir sozinho sem o reforço da comunidade internacional.

    Cada povo tem a opção de estabelecer a sua cultura e suas tradições. Isso também veio a reboque com o acender das luzes de fins do século XVIII. Isso não esta em discussão. O que preocupa e precisa ser muito bem pensado num é se deve haver relativização, mas até que ponto é LÍCITO, DESEJÁVEL E MORAL relativizar.

    Será que ao ver uma população ser dizimada num fim de mundo na áfrica ou ásia, em limpeza étnica, devemos nos sentar, bater palmas e dizer: eles quiseram assim, é costume deles? Será que é certo ver mulheres sendo apedrejadas e mortas, meninas mutiladas, meninos aliciados por milícias e não fazer nada, porque o Estado soberano que tem jurisdição sobre eles não fará nada? Precisamos lembrar que a Democracia não pode nunca se reverter em ditadura da maioria, e quem aceita ditaduras, normalmente não sabe que tem opção.

    É muito fácil trazer a discussão pra aspectos ideológicos e esquecer que nesse exato instante há pessoas sendo perseguidas, maltratadas, dizimadas, coagidas a fazer o que não querem. Mas por que nos importaríamos? Temos uma constituição que nos assegura proteção contra o despotismo, liberdade e em certa medida até mesmo igualdade.

    Sem me preocupar aqui com o fundamento dos direitos humanos, se são ou não históricos, ou naturais, espero me ater à lógica simples. Quando vc vê um cara espancando outro na rua, ou matando, ou mesmo alguém se afogando o que vc deve fazer? Pegar um pacote de pipoca sentar e assistir pra ver o que vai dar??? Não. Se vc fizer isso, provavelmente será processado por omissão de socorro. Existe uma presunção, um princípio moral vinculante e traduzido em norma de conduta, abstrata, impessoal e obrigatória de que vc deve ajudar quem precisa, mesmo que a pessoa não queira. Mesmo se o cara afogando estivesse se suicidando, vc ainda sim tinha o dever de prestar socorro. O fato de o oprimido estar inserido em outra cultura muda alguma coisa?

    Depois de tantas palavras, encerro com um pensamento de um teorico português, para o qual precisamos perceber que não se trata de um problema de igualdade, ou de diferença. Mas sim de conciliar as igualdades e as diferenças. Eu não posso sacrificar a igualdade em favor da diferença e nem o oposto.

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  9. Bem, de maneira geral, creio que mantenho os argumentos do último post que expus aqui. Não creio que esse "dever moral" exista a não ser dentro de uma sociedade que aceita-o como tal. Moral é realitvo, depende da sociedade em questão. Se para a nossa sociedade a moral prevê a necessidade de socorrer alguém, fico feliz com isso. Mas não creio que fico feliz em saber que a moral da minha sociedade prevê a arbitrariedade perante outras culturas. É uma lógica igualmente simples: se pra nós a moral ditando a necessidade de socorro dos orpimidos parece óbvia, para outras culturas talvez não. òbvio para nós a obrigação de socorer, óbio pra eles que estão fazendo o certo...

    Esse post é por demias incompleto, prefiro receber críticas sobre esse raciocíonio pautadas no meu post anterior.

    Um grande abraço!

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